O mundo que eu vi quando, pela primeira vez, abri os olhos (não muito, como todos sempre perceberam) foi Duartina. Uma Duartina de 1947, pacata e acolhedora que talvez nem tivesse percebido que o mundo fora dela tinha passado por mais uma grande guerra. E lá mesmo, alguns anos depois, da estação de trem eu podia confirmar que o mundo era mesmo redondo. Quando chegavam, os trens apontavam bufando fazendo uma curva.
Dos jornais que desciam dos trens e do som dos rádios comecei a perceber que havia outros mundos — cheios de carros, correrias, faculdades, greves, asfalto, assaltos — além do mundo que cabia no Serviço de Alto-falante Continental, na voz de Gilberto Alonso.
A morte de meu pai e a busca de novas oportunidades me afastaram desse mundo dos amigos da infância e do ginásio, um mundo que carreguei sempre comigo. Carreguei o que pude dessas lembranças que serviram sempre de referência para quase tudo nesta vida.
No mundo fora de Duartina, quando entrei na Faculdade de Direito do Largo de S. Francisco, as provas de Português e Latim foram vitais para mim. Para quem tinha tido aulas com as professoras Nelyse e Marilda, vestibular era moleza perto das provas que tínhamos no Benedito Gebara. Quando fui fazer proficiência em Francês no mestrado da Usp e, ainda hoje, quando tenho de lidar com alguns agentes franceses no meu trabalho, ninguém sabe que o pouco de Francês que arranho foi todo ele aprendido apenas nas aulas da profa. Vanda. Só estudei Francês no ginásio em Duartina, há mais de 50 anos. Quando conheci um grande matemático americano, prof. Mlodinov, autor de grandes livros, também fiquei avaliando se ele era realmente tão bom como o prof. José Antônio Marissael ou a profa. René. Só fora de Duartina pude ver como aprendi com colegas e professores brilhantes.
No mundo fora de Duartina, quando via o Taffarel defendendo a seleção, ficava pensando se ele jogava tão bem como o Toninho, nosso goleiro do DFC. Quando ouvia Ringo Starr ou Netinho dos Incríveis tocar, eu me perguntava se eles seriam capazes de tocar tão bem uma caixinha de repique como o Paulinho Andreo. Quando vejo o Falcão fazer tantos gols no futsal, fico imaginando se marcaria tantos se enfrentasse um Leonel no gol. Quando visitava museus e exposições, vendo quadros de grandes artistas, sempre sentia que faltavam lá os quadros do Francisco Rojas. Desculpem os que não concordam, mas modéstia e nostalgia não combinam. Quando fui experimentar o famoso sanduíche de mortadela no Mercado Municipal de São Paulo — era realmente muito bom — mas me deu saudade da padaria da família do Shigueru. Só Duartina para ter uma padaria de uma família japonesa!
No mundo fora de Duartina, nunca consegui encontrar um estádio de futebol com o mesmo cheiro de eucalipto, um datilógrafo tão rápido como o Cabrini do Cartório, um sorvete tão gostoso como o da Sorveteria Mizumoto, pai do Camarão, doces (canudos, bombas, bananas) tão saborosos como os da família do Katim nem jabuticabas tão deliciosas como as do quintal de minha casa.
Enfim, fui sempre vivendo com amigos de Duartina servindo de referência de companheirismo, de talento, de inteligência, de coragem, de amizade nesse mundo fora dela. Enciclopedistas de lembranças, como o Nuno. Shigueru e o Fifo, precisam registrar o que guardaram para a memória permanecer viva. Em um livro, li que “a memória é a véspera da eternidade”.
Para finalizar estas lembranças que me vêm meio soltas, sem plano nem método, vou observando que, além de redondo, o mundo também se move e faz um círculo. Os amigos vão e vêm, ou talvez, nunca se foram. O mundo é que se move e tira a gente temporariamente do lugar. Depois traz de volta. A busca de mudança, de progresso me fez sair de Duartina. Agora, é o mesmo progresso — da internet — que ajudou a aproximar-me novamente dos velhos amigos e de Duartina. Não apenas de Duartina como cidade, mas de Duartina como um estado de alma, como uma comunidade de amigos (bebendo muita cerveja, claro). Por isso, posso dizer que Duartina pode não ser a capital na geografia de São Paulo, mas seguramente ela é a capital na geografia da nossa alma.
Jiro Takahashi